Chão

IMG_7709

Ana Rita Gondim

Entre momentos de choro insano, aprende-se a chorar em silêncio. Aprende-se a chorar sem lágrimas, aprende-se a chorar sorrindo. Os olhos calam-se diante de sua invisibilidade, de sua inutilidade diante de um mundo em ascensão. Esparrama-se no chão inúmeras vezes. E é ele que te apara para que não vá mais fundo. O chão te é íntimo, mas do chão quer distância. Mas ele continua a te receber. Apesar dos pés feridos e que sangram, eles precisam seguir, ainda que as pernas falhem. Elas bambeiam, mas ordenam suas bases machucadas. Não se sabe se as feridas vieram das pernas ou da intimidade com o chão. Ela se consola com a amizade com o chão e se revolta. Pede que o chão seja apenas lembrança. Ele insiste em ser presente. Mas, um dia, ele há de ser apenas impulso para passos ascendentes e se acenarão em mútuo agradecimento.

Não te querem

escuridao

Ana Rita Gondim

Te querem leve
Te querem plena
Te querem só sorriso
Te querem só agradecida

Não te querem questionando
Não te querem em franqalhos
Não te querem entre meios sorrisos
Não te querem reclamando

Te querem sóbria
Te querem normal
Te querem santa
Te querem perfeita

Não te querem boêmia
Não te querem fora do padrão
Não te querem fora de casa
Não te querem malacabada

Te querem de aço
Te querem pronta
Te querem animada
Mas não tão animada

Não te querem frágil
Não te querem enquanto
Não te querem indiferente
Tampouco deprimida

Te querem
Não te querem
O mundo não te quer

 

 

Carta para Pandinha

panda3

Ana Rita Gondim

Você apareceu no casarão de meus avós, em Areia (PB). Conquistou os cuidados de mamãe, que lhe dava banhos e retirava suas pulgas. Aos poucos, mamãe e papai nos contavam como melhorava, comia mais e ficava espertinha. Ao precisarem retornar a Brasília, não encontraram com quem você pudesse ficar e receber cuidados. Então, eles a trouxeram de avião para nossa casa.

Com os olhos azuis, brincávamos que você herdou os olhos do meu avó materno. De todos os felinos que tivemos, você pareceu a mais sapeca, a mais danada, que mais quebrou coisas na casa. Quando chegou, no início de dezembro, mamãe queria doá-la por receio de sua asma e alergia. Mas, logo, você tomou conta de nossos corações, e jamais que a deixaríamos. Madalena, que parecia não aceitar mais outro gato, se afeiçoou a você, a adotou e virou mãezona. Ficou mais dócil e deixava os pedacinhos de carne para você roubar.

Mas, desde o dia 13, você decidiu conhecer o mundo e deixou um buraco em nossos corações. Não consegui trabalhar naquele sábado. Fizemos de tudo. Papai desceu várias vezes ao dia por vários dias. Colocamos suas fotos em todos os elevadores de todos os prédios da quadra. Pedi ajuda de amigos e da Pro Anima para divulgar suas fotos com nossos contatos. Alguns vizinhos se compadeceram. Mas, até hoje, não temos notícias suas. Duas ligações me deram esperança, mas não era você.

Em casa, precisava e preciso parecer forte. Mamãe, com dor de cabeça, sentia e sente falta da sua “boneca”. Papai, pelos cantos, deixava e deixa escorrer lágrimas. Eu chorava fora de casa e choro ao escrever esta carta.

É difícil acordar e me arrumar para o trabalho e não vê-la doidinha correndo pela casa e me atrapalhando ao arrumar a cama. Aquela energia toda me deixava doida. É difícil não ver você e Madalena correndo uma atrás da outra logo cedo e à noite, quando eu tentava dormir. Madalena também sente sua falta, parece assumir alguns hábitos seus (tira o ralo do meu banheiro, bebe água do box após tomarmos banho, corre pela casa) e está mais dengosa do que nunca.

É difícil usar as sapatilhas com os lacinhos pela metade porque você comeu. É difícil chegar à casa e reduzir a velocidade do carro sempre achando que você pode estar em algum cantinho pelo qual vou passar. Sonho em encontrá-la e fazer a alegria da família com você em meus braços. É difícil ver os pratinhos de porcelana que papai e mamãe compraram por causa da sua acne felina, e hoje só Madalena bebe água e come neles. É difícil não ver mais você provocando Madoca e a chamando para brincar.

Você faz uma falta danada, bichinha. Torcemos para que esteja bem, para que alguém a tenha encontrado e esteja lhe dando o amor que nós lhe dávamos. Caso contrário, que esteja com nosso Tomtom, nosso Miuzinho e meu Pretinho.

panda1

panda2

Ana Rita Gondim

peixeso
Fala-se que ninguém está sozinho… Mas é só nos entremeios é que há algumas gentes… Não se é autossuficiente, mas tampouco se está sempre de mãos entrelaçadas. Nas questões mais fundas, há solitude. Nos momentos mais difíceis, são raros os ouvidos. No mais das vezes, são sempre tão poucos ou quase nenhuns. Há rara gratidão, há rara companhia, há rara partilha. Não há olhos para olhos que babam. Não há palavra para aquele que silencia. Não há colo para quem não é visto. No fechar de olhos, está se sempre só. Há subterfúgios para se pensar que não se está só. Mas é se sempre só. São mais vazios, zeros, buracos, engodos do que verdades, planícies, uns e plenitudes. Mas aprende-se a se ser só, aprende-se a sentir-se menos só, reconhece-se os que nos fazem menos sós e agradece-se a companhia rara de momentos sós.

Devolvemos seu ego de volta

Carla Rodrigues

baloes-de-ego.html

a dificuldade que as pessoas têm em reconhecer o quanto o outro pode ser tão bom e/ou melhor do que você é incrível. do ponto de vista da psicologia, analiso calada, pode ser só insegurança. mas, diante de um mundo tão raso, me arrisco a pensar que é puramente escrotidão mesmo. no entanto, contudo e porém, essas pessoas que podem, sim, mostrar bons resultados, tanto quanto você, entidade máxima da perfeição, são, normalmente, legais. e o mérito, acredito, está aí: cuidam de suas vidas e não se ocupam, na maior parte do dia, em colocar defeito nos outros. reconhecem e ficam felizes pelas conquistas dos outros. reconhecem e compartilham a alegria com os outros. reconhecem e são respeitados por compartilhar conquistas com os outros. essas pessoas chegam, quase sempre, ao topo. e são sempre abraçadas pelas memórias que temos delas. e eu tenho inúmeros colegas de profissão que me provaram isso. sabiam/ sabem compartilhar conhecimento. sabiam/ sabem reconhecer um trabalho bem feito. distribuíam/ distribuem humanidade.  e não. não se trata de ego: “eu quero ser reconhecido”. pelo contrário. acho que, na guerra atual por emprego e estabilidade, qualquer não elogio também serve de conforto. essencialmente, no fim das contas, acho que só queremos ser respeitados, com todos os nossos defeitos e limitações.

enfim. acho que as pessoas que sabem reconhecer, partilhar e compartilhar conhecimento, carregam sempre um arsenal de boas energias em suas vidas. porque são e oferecem aquilo que o mundo de hoje mais precisa: generosidade.

e é essa palavra, de apenas 12 letras, que resume a grandiosidade de vocês. continuem sendo generosos e o mundo/o universo retribuirá. vocês merecem!

e quanto aos outros…lamento. vocês não acrescentam. e nem tiram o que há de melhor naqueles que fazem o que vocês não fazem: usar, de verdade, a palavra generosidade em suas rotinas. por isso, concluo eu, a vida é realmente bela.

tentem. sei lá! atrevam-se a usar da generosidade. aquela que vem da alma mesmo. sem tentativas de comprar um novo amigo. pode ser tão incrível quanto alimentar o próprio ego.

se for ruim, prometo, você receberá seu ego de volta. 

 

Solta ela

Carla Rodrigues

b0858597-018f-44cf-8661-b5bd145a40dd

Quando você acorda de madrugada com um grito de “solta ela”, olha pela janela e tem uma mulher sendo agredida. Quando você ouve o cara dizendo: “ela é a mãe do filho”. Como se aquilo desse direito de ele bater nela…Quando você finalmente tem a capacidade mental de assimilar tudo isso, como aconteceu comigo na madrugada desta segunda-feira, manas, só consigo pensar: soltem-se antes que seja tarde. E isso serve, claro, também para mim.

Nós, que temos a possibilidade, pelo menos financeira, de não precisar passar por isso nunquinha, temos que nos soltar desse tipo de relação o quanto antes. Porque sim: caras assim dão sinais. Nem sempre visíveis a olho nu, mas dão.

A gente tem que se soltar o quanto antes para que os outros não precisem gritar por nós. Fico pensando: se a mulher em que ele batia era a mãe do filho dele, há quanto tempo será que ela não vive isso? E por que ainda não saiu disso? Sei que existem motivos. A maioria, inclusive, subjetivos. Porque uma relação assim não se estabelece simplesmente. Ela é construída culturalmente, psicologicamente, politicamente…Enfim. São muitas as variáveis.

Às vezes, ela depende dele financeiramente. Às vezes, ela não consegue se enxergar como uma pessoa de direitos. Às vezes, sem ele (e apesar dele), ela se sente só. Sei lá. Não estou julgando.

A ideia aqui é simplesmente fazer o alerta. Repito: inclusive para mim. A gente vai levando, empurrando com a barriga, relevando, deixando baixo… Até que um dia você está caída no chão, levando porrada de um marmanjo porque, afinal de contas, você é a mãe do filho dele. “ELE PODE”. NÃÃÃÃOOOOOOO. Eles não podem. Tá ligado em como isso é absurdo? Então, mais uma vez, digo: soltem-se. Soltemo-nos. Para que, mais adiante, não gritem por nós: “solta ela”.

Sobre morangos e a maternidade real (ou viável)

Rayssa Tomaz
17198360_10154411917671094_1900962684_n
Não sou dessas mães que ficam racionalizando a maternidade. Acho incrível quando vejo aquelas pessoas organizadas e pragmáticas, que tem tudo anotado, que conseguem fazer previsões, que são capacitadas pela vida pra dar dicas sobre parto, sobre puerpério, alimentação ou qualquer outro assunto relacionado. Eu nem sou uma boa referência para falar sobre isso; por aqui tudo é um pouco fora do esquadro, com regras um pouco confusas para a maioria das pessoas, ainda que sejamos felizes e não tenha acontecido nenhum imprevisto sério nestes quatro anos.
Para quem não me conhece, eu sou a Rayssa. Solteira (ou melhor, separada), jornalista que trabalha com política/campanhas eleitorais, 28 anos e virginiana. Essa é a maneira como eu me apresento para o mundo, em linhas gerais.  Essas informações já foram suficientes, mas não condizem em quase nada com a minha realidade. Eu sou a mãe da Beatriz, de quase quatro anos, e da Cecília, de 1 ano e meio.
Talvez, o fato de eu simplesmente não conseguir me resumir a este último e incrível enunciado seja o motivo deste texto ou a causa principal para a minha condição de “mãe viável”. Não digo isso com muito pesar. Existe culpa? Sempre. Existe medo? Todos os dias. Mas há muito amor e muita compreensão, de todos os lados que vocês puderem imaginar. Tenho certeza que o processo mais importante para afastar os sofrimentos é a autoaceitação. Eu queria ser diferente em milhares de coisas. Eu queria ter mais paciência, mais dedicação e mais tempo. Eu queria ser a mãe do grupo do whatsapp, da turma da minha filha mais velha, que construiu um relâmpago McQueen de papelão para a semana do trânsito no último ano. Ficou incrível!
Eu também queria ser a mãe que cozinha comida orgânica cheia de nutrientes pras crianças, mas ao invés disso, eu me contento em comprar suco orgânico e biscoitos integrais – mesmo não confiando 100% neles ou que desiste e abre um salgadinho quando precisa terminar alguma coisa do trabalho e as crianças estão em polvorosa. Me julguem, ou sintam-se abraçadas.
Queria ainda ser das mães que moram no meu condomínio e que passam, diariamente, umas 3h por dia no parquinho com seus filhos. Ah, como eu queria achar isso tudo maravilhoso. Queria ter estas horas extras no meu dia que parece que só tem 4h. Eu mal consigo conversar com estes seres humanos, porque em mim reside um misto de vergonha x falta de atenção enquanto eu olho duas crianças correndo e o celular que nunca para de apitar, seja por questões de trabalho, seja pelas pessoas interessantíssimas que querem falar as últimas novidades do mundo comigo.
Minha rotina de trabalho é extenuante. Saímos de casa todos os dias por volta das 8h e só retornamos por volta das 20h. Após a saga comida/banho/hora do sono, eu posso deitar no meu sofá por alguns minutos caso eu consiga esquecer que preciso arrumar as coisas, limpar, colocar roupa pra lavar, olhar a agenda da escola e arrumar o lanche para o dia seguinte; nunca termina. Nunca temos uniformes limpos e as roupas no varal demoram mais de uma semana para serem retiradas de lá. Não tenho babá ou “secretárias do lar”. Minha mãe assumiu comigo a minha maternidade, minha “wingwoman”, e cuida sempre das meninas enquanto eu estou no trabalho ou quero sair pra tomar uma cerveja antes da minha cabeça explodir. Ah, eu ainda consigo ler e assistis episódios das séries do Netflix. Durmo super tarde, ainda acordo algumas vezes na madrugada para amamentar a pequena. E assim, com poucas horas de repouso, muita Coca-Cola e bom humor, vamos seguindo a vida.
Sei que este texto está tenso e um pouco lamentoso, mas essa introdução serve apenas para falar sobre a arte de não sofrer tanto. Citei acima a agenda escolar para lembrar do exato dia no qual eu tive a epifania de que “não há guerra em que não saiam feridos soldados de todos os lados”.
Vivo equilibrando a pirâmide formada pelos eixos mãe x profissional x eu mulher. Não gosto de ficar conjecturando sobre isso porque, em resumo, sou uma pessoa privilegiadíssima. Moramos bem, pago minhas contas em dias (a maioria delas) e estamos sempre de barriga cheia. Nesse tempo, conseguimos ainda nos divertir. Tenho filhas saudáveis e felizes.
Dia desses, vi na agenda um recado sobre ter que comprar morangos para que as crianças fizessem uma atividade sobre frutas e cores. Eram 8h30 da manhã, do dia x. Não havia sequer a menor possibilidade de achar morangos ou de eu ter tempo para isso. Infelizmente, mandei a criança sem as frutas. Refleti alguns minutos, em meio à correria, mas pensei… Sobreviveremos. E assim foi. Confesso que, ao longo dos últimos dias, o morango não comprado ainda martelou meus pensamentos. Será que poderia ser diferente? Elas merecem mais do que eu, obviamente, posso dar. Eu não sou a mãe que a sociedade gostaria que eu fosse. Não sou a profissional que eu era e ainda queria ter um namorado (o que parece fora de cogitação nessa loucura toda). Eu não tenho a vida e muito menos chego perto das projeções de como ela deveria ser. Mas estamos bem, estamos juntas. Chegamos ao conceito da maternidade viável, a que dá pra ser.
Sofri um pouco quando passei 50 dias dedicados às eleições e não vi o exato momento que a Beatriz deu seu primeiro passo. Mas a avó paterna estava lá e, tudo bem. Segurei sua mãozinha tantas outras vezes, amparei em tantas quedas e acolhi em tantas outras. De alguma forma, me convenci que ela vai ter orgulho da mãe “real”. Da mãe que precisa correr pra ganhar o pão, ainda que ele chegue atrasado porque não deu tempo de passar na padaria depois daquela reunião que se estendeu até às 23h.
E aí, ontem, assim do nada, Beatriz me lança um “mãe, eu te amo tanto”. E eu tive certeza que sofrer não é uma possibilidade. E viva a maternidade possível, a factível e a exequível.

HOMEM

Por Caetano Veloso.

falo

É a letra de uma música. No entanto, cá entre nós, diz muito sobre os homens. E toda a beleza de ser mulher. Sim. Eles só pensam em… E nós, mulheres, super mulheres, temos tantas, tantas vantagens. São qualidades que não cabem em uma poesia. Mesmo sendo do Caetano.

“Não tenho inveja da maternidade
Nem da lactação
Não tenho inveja da adiposidade
Nem da menstruação
Só tenho inveja da longevidade dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos

Não tenho inveja da sagacidade
Nem da intuição
Não tenho inveja da fidelidade
Nem da dissimulação
Só tenho inveja da longevidade dos orgasmos múltiplos
E dos orgasmos múltiplos

Eu sou homem
Pele solta sobre o músculo
Eu sou homem
Pelo grosso no nariz.”

E segue, abaixo, a música interpretada pela linda Alice Caymmi:

 

Caixa de reminiscências

Ana Rita Gondim

porao
A gente já sabe, mas é preciso insistir depois de mais um erro. É preciso deixar o passado no passado. É preciso passar a chave na gaveta do que já foi um dia e jogá-la fora. Nada do que foi será possível retornar. A gente se engana com o que é verbalizado, com gestos e atitudes. A gente imagina um olhar, uma exclamação ou umas reticências onde não há além de um ponto final colocado lá atrás. É uma mania de esperar que ainda persista o que de bom já existiu. É um vício achar que ainda poderia ser especial para alguém. Fantasias são criadas para preencher não se sabe o quê. E as ilusões e desilusões foram fabricadas, não há culpados, além de si mesmo pela loucura ou cegueira. E a dor é inevitável. É preciso parar de abrir a caixa de reminiscências. O que lá existe foi vivido e sentido por um, mais ninguém. Fez parte de um, fez ser quem se é, mas está lá atrás e deve-se deixar que assim permaneça. As memórias são perigosas, deveriam apenas fazer sorrir pelo que foi vivido e não atravancar o que se pode ainda viver. Vontades que devem ser conservadas caladas, inauditas e guardadas entre poeira e emaranhado de teias de aranha na gaveta do passado.

A distração, o Valter da Ana e a cortina amarela

A Ana Rita Gondim anda apaixonada pelo Valter Hugo Mãe. E a Carla, de curiosa, foi buscar na internet quem é esse autor. Bom. Ela encontrou uma entrevista incrível. Compartilhamos, então, com vocês, quadradeiros. Um ótimo fim de semana a todos! 

usando-amarelo-na-decorao-blog-vinicius-de-mello2-2_thumb

A felicidade é uma cortina amarela

A Pulga: Quem está de fora tem a sensação de que você sempre teve essa dimensão de que a felicidade era simples, porque você sempre prestou atenção nas coisas simples.
Valter Hugo Mãe: É, mas eu só aprendi isso agora. Eu só percebi agora que uma cortina amarela em casa é uma dimensão fundamental da felicidade. Uma coisa tão ridícula, mas tão simples que a gente só senta ali. Recebe um amigo, faz um jantar e só sente aquele momento e a gente pensa: “Não é necessário ganhar prêmios, não é necessário ter televisão, seja o que for. Felicidade esteve o tempo todo aqui, tem uma cor (risos) e tem uma gente, não é?” Mas acho que fui estabelecendo essas metas porque achava que precisava de concretizar alguma coisa. Precisava de criar algum tipo de relação de conquista assim: “Ok, eu sou viável, eu paguei as minhas contas, a minha mãe não precisa estar preocupada comigo achando que vou morrer de fome, que não tenho nem roupa, que ninguém vai gostar de mim”. E sabe que acho que hoje não tenho nenhuma data pra morrer? Porque eu acho que deixou de ser importante. O morrer deixou de ser importante porque, de algum modo, as coisas ficaram muito completas. Então, perdurar mais tempo, perdurar menos tempo já não vai retirar de mim esta sensação de plenitude que é sobretudo um modo mental de existir. Não é o ter muita coisa. Não sou um homem rico. A maior parte do dinheiro que tenho, doo para pagar dívidas de pessoas amigas. Não tenho coisas caras. Se o acaso me matar, já não importa muito porque minha vida já valeu muito a pena. (…)

A Pulga: Pois é, sua literatura vai também na contramão dessa pós-modernidade meio descrente…
Valter Hugo Mãe: Ah, estou careca dessa pós-modernidade cética, descrente, blasé, que fica duvidando de tudo. Ceticamente posta acima de tudo, como se o cara lá fosse iluminado o suficiente pra perceber que não vale a pena. Ah, então se não vale a pena, não escreve, não faz, não sai, não come e migra pra uma lua, pra outro planeta. Deixa construir quem quer construir. Deixa acreditar quem quer acreditar. Se você não acredita, então arranja modo de acreditar. 

#amamosvalterhugomãe

Mais em: A felicidade é uma cortina amarela